Transcrevo agora o texto que escrevi propositadamente para este evento:
Em toda a sua obra publicada (e inédita), Rosa Dias realiza uma Etnografia da Memória, que a Poesia enriquece, num jogo de apuro, com as palavras, que são paleta e objectiva, recolhendo elementos para quadros, que atravessam a fronteira dos sentidos, transportando o leitor até paisagens de amplos horizontes, onde o verso tem escala humana.
Na sua poesia, emerge a génese alentejana e camponesa, o património imaterial, que consubstancia as Festas do Povo, as profissões laboriosas das gentes do campo, as tradições marcantes, o saber - fazer identitário dos mestres, a linguagem pródiga em regionalismos, o colorido de um humor distinto, que apenas os alentejanos sabem fruir. Há na dimensão dos seus retratos, das suas telas rimadas, o fulgor de páginas de escritores, como o Silva Picão, de “Através dos Campos” ou o João Mário Caldeira de “Margem Esquerda do Guadiana, As Gentes, A Terra Os Bichos”.
Rosa Dias recorre, qual antropólogo, à observação - participante, para descrever vivências, interacções, modos de ser e de fazer, e até para registar que certos rituais pertencem ao passado, pois “o mundo está em mudança, hoje a vida tem outro fado.”
Em “Novo Amanhecer”, o livro que já nos levou a Campo Maior, numa noite de Verão mágica, importa realçar que o género é pedra de toque, para Rosa falar da sublimação dos dias, através do olhar feminino, assumidamente como complemento vital da Humanidade, na conjugação homem/mulher, em colectivo, pelos territórios do Amor.
Na página 63 há um poema que vale todo o percurso de tão esplêndida existência, pois se Eugénio de Andrade escreveu “Num prato da balança um verso basta / para pesar no outro toda a minha vida”, Rosa Dias conta-nos, em “A força de querer”, escrito há oito anos:
“Disse um dia, vou em frente;/ Gritou a vida, isso é que não!/ Julgas-te gente? Não és gente/ Larga a escola; ganha o pão//
“Assim me roubaram o prazer/ De estudar, p’ra ser alguém/ Mas esta força, do querer/ Ninguém a roubou, ninguém…//
“Ter de novo na minha mão/ A saca, o lápis, a sebenta/ Foi dizer sim, a esse não/ A caminho dos sessenta…”
A toada aleixiana, que pode estar subjacente à origem desta poesia, de raiz tradicional, é suplantada pelo cunho vincadamente alentejano, pela pegada desta cidadã do mundo, pela tatuagem dos dias no seu ADN, pois a par dos hinos ao sul, saboreamos passagens pelos Açores, por Alpedrinha, andanças por Lisboa, reflexões onde o Mundo surge, enquanto realidade do quotidiano, ao ponto de também ter composto um texto actualíssimo: o rap rep da minha vida.
Depois de Toadas Alentejanas (1989) e Anexins e Nomes Engraçados de Campo Maior (1997), “Novo Amanhecer” marca uma indomável vontade de viver e partilhar uma arte, que explodiu um dia, com a urgência da fome ou da respiração, no sangue intempestivo do Verbo.
Abençoada arte da fala, que tem proporcionado, de norte a sul, o convívio com esta pessoa maravilhosa, que espalha a harmoniosa beleza de sílabas morenas, trazendo trigais e cantares, lágrimas, suores e sorrisos, esperanças e destinos, em rimas que embalam momentos, encontros, lugares.
Rosa Dias, a menina - ave, que enfeitou de sonho a sua partida para a grande cidade e nela trabalhou, amou e construiu um ninho de amor e poesia, é a mesma que decorrido um percurso, eivado de peripécias e mágoas, nos interroga, como Carlos Drumond de Andrade, acerca da melhor forma de ultrapassar a pedra, que ficou no caminho.
Querida Rosa: É um enorme privilégio ser teu amigo e poder celebrar neste espaço único, como é o teu coração, as décadas de experiência que já acumulaste, qual tesouro onde a luz e a harmonia estabelecem o equilíbrio da essência.
Não há um poeta como tu, és irrepetível, a tua eloquência, a tua vivacidade são uma oferenda para todos nós.
Interpretas como ninguém esse fogo que te alimenta, em cada estrofe, em cada espaço, onde o som e o feitiço de te escutarmos, seduzidos pela musicalidade, pela força telúrica, pela justeza de cada vocábulo, nos permite guardar o pedacinho de lava desse vulcão de sabedoria que só tu sabes.
Como agradecer-te a ternura de seres?
Luís Filipe Maçarico
Fotos: LFM/ Paula Cristina Lucas da Silva
5 comentários:
Como sempre dizes as palvras certas, analisando criticamente os escritos e com afecto as almas que os escreveram. A minh alma esteve hoje convosco na Casa do Alentejo, estando o meu corpo preso a Vagos.
Excelente texto amigo. Que a julgar por aquilo que conheci da autora quando andei pesquisando para o meu blogue é bem merecido.
Muito sucesso para ela.
Um abraço e bom Domingo.
Testemunhei esta tarde de luz fresca, na Casa do Alentejo, onde a Rosa Dias lançou o seu novo livro de poemas, "Novo Amanhecer", emocionou o público e mereceu todas as palmas e palavras que lhe foram dirigidas. O Luis, como sempre esteve no seu melhor, acompanhou a sessão, fotografou, discursou e encantou, mas a protagonista foi a Rosa, com a sua simpatia, verdade e declamação únicas... um dom só para alguns... a alma do alentejo respirou-se, sentiu-se o calor, as paredes brancas, a terra gretada, o sul imenso da planície, nos versos da Rosa, ditos por ela, pela Isabel, pela Rosa Calado, pelas cantadeiras, pelo grupo musical... foi um abraço, um colo alentejano que se viveu em pleno... e sim, a Rosa mereceu cada ovação, cada arrepio, cada beijo, cada presença. Beijo à Rosa e ao Luis, pelo seu texto e pelo prefácio. Foi uma tarde luminosa, inesquecível... Valeu a pena.
Eu que me imaginava quase uma Senhora das palavras , me encontro neste momento sem palavras para vos dizer obrigada meus amigos por tanto carinho!
Deixo-vos aqui o meu abraço desta amiga certa Rosa Dias
pois, como diz a maria josé, também deixei a alma viajar até à casa do Alentejo. também o corpo se soube preciso aqui porque a trabalhar todo o fim de semana...
a Rosa Dias há-de ter sentido toda a emoção de todos os muitos amigos que hão-de ter estado fisicamente assim como o muito carinho que do teu texto transparece. a Rosa é esse Ser cheio de Alentejo que merece esse cerco de ternura...
beijo nela e em ti, poetas, amigos.
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