A par de uma investigação aprofundada e transdisciplinar, acerca da sua terra natal repartida em vários volumes, cuja apresentação da “Fotobiografia de Uma Aldeia Alentejana” testemunhei num amplo e repleto salão na Comenda, com centenas de conterrâneos, Jorge Branco, em boa hora decidiu escrever sobre aspectos humorísticos da sua profissão, implicando um relacionamento onde o gracejo espreita e se derrama, entre médico e doentes.
Na
Introdução a este “Dói-me tudo, senhor Doutor! Estórias com humor apesar da
Covid - 19”, Jorge Branco explica o seu olhar sobre os doentes:
“Muitas
dessas pessoas segui-as dezenas de anos: vi-as nascer, crescer, ter família,
perderem-se na vida ou, as mais das vezes, singrarem e subirem a pulso pelas
agruras do quotidiano de gente pobre. Mas, neste “vale de lágrimas”, sempre
encontrei disposição e alento para relativizar o sofrimento e dar ânimo aos que
dele precisam (…) Escolhi momentos de descontracção, de convivência pura, de
entendimento humano, enfim, de boa disposição.
(…)
Agradeço aos meus utentes, o seu manancial de boa disposição que transportam
debaixo do manto nem sempre diáfano das queixas que os apoquentam diariamente.”
Na
sua obra “O Riso”, Henri Bergson explica que “Para compreendermos o riso, temos
de o repor no seu meio natural, que é a sociedade; temos sobretudo de
determinar a sua utilidade de função, a sua função social.” (Op. Cit. P. 17)
Foi
com grande agrado e muito divertimento que li esta colecção de apontamentos,
crónicas, contos, textos sempre eivados de boa disposição que neste tempo de
sobressaltos, tanta falta faz ao leitor, pois e citando ainda Bergson “O riso
deve dar resposta a certas exigências da vida em comum”, porque “o riso deve
ter uma significação social.” (Ibidem).
Supõe-se
que a sequência dos textos não corresponde a uma cronologia de acontecimentos,
ainda que se fundamentem na observação-participante que os antropólogos
desenvolvem e a recolha de cariz também etnográfico tenha implicado a
necessidade de um caderno de campo, onde se patenteiam mentalidades e
comportamentos e o melhor património que é o próprio ser humano.
Tal
como em João de Araújo Correia, a prática do consultório garante a experiência
laboratorial de uma escrita original, retratando inúmeros pacientes e suas preocupações…
Enquanto
aquele escritor da Régua criou personagens dramáticos que se tornaram clássicos
da literatura portuguesa - como na velha das panelas, nos figos de pau, no
mestre dos dízimos ou para o meu bispo, dos “Contos Bárbaros”, Jorge Branco
regista episódios anedóticos, que são o contraponto alegre de situações sérias,
acessíveis a qualquer leitor que se satisfaça com uma breve e hilariante
descrição.
Do
paciente incapaz de se “peidar” à utente que necessitava de várias caixas de
aspirinas, para travar o envelhecimento das suas plantas, passando pelo homem
que desejava um medicamento para se proteger da Covid, da qual ouvira falar na
televisão, ou o marvilense que contraiu um ABC, cada caso merece uma reacção
divertida ou intervenção que faz pensar e sorrir, no dizer do Bastonário da
Ordem dos Médicos.
Juntando-se,
na galeria dos médicos - escritores, como Júlio Dinis e Fernando Namora, Jorge
Branco com a sua imaginação prodigiosa e sempre risonha, dá-nos a conhecer a
incomodativa funcionária verborreica, a rapariga magra, aracnídea e a filha que
proíbe o pai de beber, contribuindo na sua narração para evidenciar uma nova lista
de personagens irresistíveis.
Jorge
Branco, relatando muitos momentos e figuras da sua actividade laboral,
demonstra uma enorme paciência, exercendo, como escreveu Júlio Machado Vaz em “Recuperar
o Espanto: O Olhar da Antropologia”:
“A arte de curar, mas também de cuidar do
doente” (Op. Cit. P. 55) pois na Antropologia Médica “O ponto de partida lógico
é a consulta, o diálogo médico-doente.” (Ibidem: 60)
Berta
Nunes, em “O Saber Médico do Povo” avisa-nos que a doença “pode ter causas”
naturais psicológicas, sociais ou espirituais e uma mesma doença pode ter
vários níveis “causais”. (Op. Cit: 192).
Por
vezes, encontramos doentes, que recusam fazer certos exames, parecendo saber
mais que o médico, como é o caso da colonscopia de D. Engrácia e no caso do
conto “Chulé”, não podemos deixar de lembrar Georges Vigarello, em “O Limpo e o
Sujo”, chamando a atenção para o sabão que “apaga e dissolve a sujidade.
Purifica.” (Op. Cit: 134).
A
generalidade dos pacientes é gente dos bairros periféricos, que vive nas
franjas da cidade, explicando com ignorância e simplicidade redutoras quadros
clínicos complexos que o médico descodifica divertidamente, comentando a
linguagem criativa dos populares, evitando a rotina.
Úrsula
é um diálogo feliz, em contraponto com Grafemas, cujo doente é conflituoso. Os
contrastes abundam.
Incoerente
é a protagonista do derradeiro texto.
Efectivamente,
Guiomar afirma não entender palavras como hidroterapia e talassoterapia, usando
contudo vocábulos como miorrelaxantes, ansiolíticos, antidepressivos,
estabilizadores do humor, analgésicos e enésima vez.
O
desfecho revela uma petulância desconcertante que conduz o autor a mais uma
tirada insólita e risível.
Livros
como este fazem falta!
Revelam
o lado cómico de uma profissão que lida com o padecimento dos utentes,
enxergando na espontaneidade dos processos e respostas à ingenuidade dos
queixosos, o lenitivo, para não só os predispôr para dias menos aflitivos como
garantir àquele que se apoia na ciência e sabedoria, soluções que incluem
chistes e gargalhadas nas conversas, receituário e análise.
A
vida observada sob este prisma, é sem dúvida mais suportável.
Parabéns,
Jorge Branco!
Parabéns
à Colibri pela edição desta obra tão especial!
Luís Filipe Maçarico - autor do texto de apresentação e das imagens
(Poeta; Antropólogo)
18-4-2022/
3-5-2022
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