Em boa hora a Colibri editou este livro - “Gentes que Marcam a Vida da Gente”.
O título não podia ser melhor escolhido,
pois define todo um repositório de conhecimentos e experiências, onde o Povo de
Ferreira do Alentejo protagoniza esta saga.
Escrito no tempo disponível que o segundo
confinamento proporcionou à autora, é resultado de uma memória pujante acerca
das vivências marcantes da sua aprendizagem, enquanto pessoa, observando a
geografia humana em redor, do sul das injustiças à capital do Império, donde
emanavam as restrições.
“Gentes que Marcam a Vida da Gente”
recorda as transformações de toda uma época, desde uma Pensão que era o
Microcosmos da Comunidade, onde Rosa Calado, aliás Teresinha, criou as suas
raízes.
A “informação experimentada” dá-nos a
conhecer o mundo dos rendeiros agrícolas, dos seareiros, dos pequenos
lavradores, das meninas descalças e dos que lutaram contra a ditadura, sendo o
tio João o herói, expoente máximo na Vila, dessa luta sofrendo prisões e
torturas.
Com um néon luminoso, a “Nova Pensão” tinha a porta sempre aberta.
A mãe, exímia cozinheira usava com mestria
os ingredientes da terra, enquanto o pai era exemplar na arte de receber,
cativando pelo sentido de humor.
Teresinha adorava ler Poesia,
privilegiando o Teatro, que fomentou em adulta, encenando muitos dos seus
alunos.
Os hóspedes eram notários, oficiais das
finanças, professores e médicos, entre outros funcionários públicos.
O espaço foi-se renovando e ampliando
fazendo juz ao nome. Teresinha cirandava e brincava escutando ao pai frases que
transmitiam valores. Que a Terra estava mal distribuída, que os padres - dos
quais se esperavam atitudes fraternas, com humildade e amor ao próximo - pela
postura altiva mereciam o anticlericalismo militante dele.
Fala-se de Maria, oriunda de Huelva, que
servia as refeições e higienizava os quartos, dos tontinhos e da cadeia que
tanto impressionavam Teresinha, bem como dos embuçados com fome mas muita
dignidade, que recusavam a caridade, detestada por José, o pai.
Autobiográfico, com palavras bem
escolhidas, Rosa Calado pinta telas onde a marca profunda da estratificação
social e o controle do regime impunha e formatava costumes, tradições e
mentalidades (p. 70); como um clarão irrompem nas descrições onde a PIDE
aparece, através de homens cinzentos e a miséria afronta os pensamentos pueris
da jovem.
No ciclo anual das Festas, há Mastros,
Presépios, Férias nas Caldas de Monchique, o cinema na esplanada cujo écran
possuía a dimensão daquele que era possível fruir no Monumental de Lisboa e a
Feira Franca, com uma barraca de sopa dos pobres, exibindo a caridadezinha odiosa.
Os anos 60 trazem sinais que irão
enfraquecer o Estado Novo. A Guerra de Angola, a Fuga de Peniche, a queda de
Salazar.
Depois da escola e do colégio, dirigido
por um padre que insulta a família de Teresa, da revelação de um suicídio, da
percepção do clube dos ricos, restritivo e da associação recreativa, acessível
a todos, surge o Liceu de Beja, onde Martinho Marques, o prefaciador, era
colega da autora, realizando-se uma inesquecível excursão a Sevilha, Granada e
Córdova. A evocação de Gonçalves Correia, o libertário que soltava pássaros das
gaiolas e as eleições de 69 são igualmente marcantes.
Já em Lisboa, primeiro na Faculdade de
Direito, onde tem um professor chamado Marcelo Caetano, que virá a ser primeiro
- ministro, tentando maquilhar o regime, Teresa casa-se com Francisco, mudando
para a Faculdade de Letras.
As leituras, desde “O Romance da Raposa”
de Aquilino e “Constantino, Guardador de Vacas”, de Redol, livros oferecidos
pelo tio João, Urbano Tavares Rodrigues, Maria Judite de Carvalho e Manuel da
Fonseca, são autores de referência que vai descobrindo.
Não é por acaso que a narrativa termina
com um belíssimo poema de Eduardo Olímpio, após o testemunho do decisivo
desempenho do pai, que influenciou o irmão João para abraçar a resistência, o pai
“fazedor de trilhos”, culminando no Abril de todos os sonhos.
Para trás ficavam as tias, a mercearia, a
beata que nas procissões se punha debaixo do andor, humilhada por um clérigo, o
anão sábio e tantas figuras que Rosa Calado apresenta ao leitor.
“Gentes que Marcam a Vida da Gente” lê-se
de uma assentada, tal é a fluidez da linguagem, o encantamento, o prodígio de
uma infância feliz, o cenário com escala humana de desigualdades e combate
político.
Pela força dos episódios contados, há
qualquer coisa de realismo mágico em certos momentos do texto.
Por isso, parabenizo Rosa Calado e
Fernando Mão de Ferro, por esta aventura.
Recomendo vivamente “Gentes que Marcam a
Vida da Gente”. E aplaudo!
Almada, 10-5-2021
Luís Filipe Maçarico (Antropólogo e Poeta)
Reportagem Fotográfica: Fernando Duarte. Intervenções, entre outras, de Rosa Calado, Eduardo Olímpio e LFM. Com Maria Eugénia Gomes e Maria José Balancho. E a assistência.
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