"Um Barco atracado ao cais é sempre um sonho preso"

segunda-feira, junho 11, 2018

EUGÉNIO DE ANDRADE: O POETA QUE VALORIZOU A CULTURA POPULAR*




 *Artigo publicado no nº 23 da revista ALDRABA, da Associação do Espaço e Património Popular, Abril 2018, pp.  2 a 4.



                                         Fotografias de Dario Gonçalves
                                                    Eugénio pintado por Artur Bual

Em “Rosto Precário”, Eugénio de Andrade revela: “Nasci na Beira, naquela Beira que prolonga o Alentejo. Ali passei a infância, ali ia a férias na adolescência. A minha memória está cheia de searas e medas de pão, do rumor dos rebanhos, do olhar solitário dos pastores, do cheiro a poejos e a barro fresco.”[1]

E noutro texto assegura: “Sou filho de camponeses (…) e, desde pequeno, de abundante só conheci o sol e a água (…) A terra (…), a luz e o vento (…) As minhas raízes mergulham (…) no mundo mais elemental.”[2]

António Lobo Antunes confirma que Eugénio “Conservou-se sempre um camponês da Beira Baixa natal, feito de puerilidade e manha, gerindo ciosamente a sua obra a fingir-se desinteressado, distantíssimo e, no entanto, alerta como um coelho bravo.”[3]

Gonçalo M. Tavares declara que o Poeta “admira os poetas (…) que comunicam uma energia às palavras (…) “capaz de as fazer resistir [“à usura do tempo”] “tal como faz o oleiro com o barro ou o ferreiro com o ferro.” É dessa “consciência artesanal” de que se orgulha.[4]

O próprio autor de “Branco no Branco” confessa-se perfeccionista: “Há períodos em que necessito da escrita como de um corpo: persigo então o poema até à exaustão (…) Às vezes o poema é feito em minutos, outras, demora dias e dias (…) continuo a emendar, a rasgar, a deitar fora (…) Persigo o poema como um cão até às últimas provas. E mesmo de edição em edição.”[5]



Tive a sorte de ter conhecido nesta vida breve, que passa como uma vertigem, Eugénio de Andrade, pseudónimo de José Fontinhas, o qual foi um dos poetas que influenciou os versos da caminhada, desde a juventude. Quis o acaso, que o Poeta, cujas aparições em público eram raras, se tivesse deslocado à Feira do Livro, na capital.

Enquanto autografava a obra que adquiri, mencionou o poder das suas palavras, junto dos presos políticos, que lhe agradeciam a poesia solar.

Depois desse encontro, e estando em Alpedrinha, na casa de Clara Nabais, esta confundiu o autógrafo, com uma proximidade que não existia, insistindo no envio de uma carta, convidando-o a visitá-la. Redigi a missiva, a seu pedido, pensando que ele não se deslocaria até àqueles lugares.

Todavia, no Verão seguinte, Eugénio regressou às origens e, como nota Maria dos Anjos: “Ele derretia-se todo a falar com a ti Clara. Era muito doce”…[6]

No JL apareceu então um texto, onde explicou que a Clarinha era amiga de sua Mãe, lembrando-se que as duas faziam “flores de papel, tão delicadas e fragrantes, que todos pensavam que vinham da China ou do Japão.”[7]

Acompanhei Eugénio à Póvoa, com Dario Gonçalves e, na memória dos que assistiram à sua nostálgica visita, ficou a ideia - que me parece errada - de uma pessoa distante. A minha interpretação diverge do senso comum. Tenho para mim que Eugénio era tímido e ficar rodeado por desconhecidos (que se orgulhavam do conterrâneo famoso que aparecia na televisão, causava-lhe algum constrangimento, tentando então conter emoções, resguardando-se e isso foi entendido como aspereza. Escrevi-lhe a lamentar a incomunicabilidade entre o Ilustre e o seu Povo, lembrando que aqueles seres humanos não podiam ser penalizados por causa da forma como seu pai (um lavrador abastado) o teria tratado e a sua mãe.

Foi com júbilo, que tornei a vê-lo, mais cordial, na inauguração de uma placa [“aqui viveu Eugénio de Andrade com sua mãe, em criança”], quando retornou aos primórdios, mandando rezar missa pela alma da mãe, com distribuição de bodo aos conterrâneos.

Esse regresso culminou na apresentação de “Poesia, Terra de Minha Mãe”, no Fundão, magnífica edição com fotografias de Dario Gonçalves.

Visitei-o quatro vezes no Porto, duas na Duque de Palmela, uma das quais no 2º andar do 111, onde residia, surpreendendo-me com o despojamento onde se evidenciavam livros, arrumados num exíguo espaço. Acompanhado pela Cristina Pombinho, fomos recebidos com a amabilidade do seu sorriso afectuoso, oferecendo-nos com gestos poéticos, de mágico eloquente um cálice de generoso Porto, que primeiro fez dançar ao sol da tarde dourada, no belo e precioso frasco, onde parecia uma jóia liquefeita.

Alfredo Flores, músico da Gulbenkian e antigo dirigente da Federação das Colectividades evocou-o com estas palavras: “Ainda te lembras quando o fomos visitar na sua casa da Foz? Era um velho sábio, ternurento.”[8]

Com Mena Brito encontrei-o acolhedor e muito atencioso, recomendando que falássemos com Marcela Torres, da Afrontamento, pois a maquete de “Atmosferas do Corpo”, obra-resumo do trabalho da pintora, que acabaria por lhe dedicar a exposição “Azul Ardente”, agradou-lhe. No seu depoimento Filomena Brito, escreve “ O Eugénio que conheci era exigente, requintado, não tolerava falsidades, (…) Poeta basicamente solitário, que recebia com forte selectividade quem ele muito bem entendia. Por todas as razões, senti-me uma privilegiada!” (…) Em 2005, na Galeria 65 A (à Graça, em Lisboa), resolvi homenagear o Poeta através duma exposição de pinturas de minha autoria, em que cada uma das telas foi baseada num poema seu. A abertura deste evento contou com a participação inestimável da Esmeralda Veloso (…) na leitura declamada de poemas de Eugénio de Andrade. Foi uma sessão particularmente emotiva e marcante, a culminar nesse mesmo dia, pela estranha coincidência de ter recebido a notícia da morte do Poeta!

A sua terra natal, a zona rural da Póvoa da Atalaia, a sua experiência vivida, o seu respeito e admiração pelas pessoas simples e autênticas, está tudo «aqui», no seu laboratório de poemas, que ele nos legou, na alma cheia e transbordante que nos deixou através da Poesia e da ciência das palavras.”[9]

Resta contar em breves linhas como Artur Bual fez um retrato (na sua técnica gestualista) de Eugénio. O pintor aceitou o meu desafio, para escutar o poeta na Livraria Barata. Depois acompanhámo-lo à Galeria Nasoni, na inauguração da exposição de Muñoz e aí Bual saiu-se com esta afirmação: “Agora é que eu percebi quem o senhor é. Você é uma criança grande, perdida neste Mundo!” Eugénio corou e ficou tão sensibilizado por esta radiografia da alma, que me pediu para transmitir ao Mestre o desejo de ter um retrato de sua autoria, com o qual percorri meia Lisboa até chegar ao mensageiro que iria fazê-lo chegar ao Porto. Na galeria dos Poetas e Escritores que Bual pintou, existe um Aquilino, uma Florbela, uma Sophia, uma Natália, um Camões.

Mas o Eugénio de Bual era um poeta vivo, o tal senhor sábio e tranquilo, que me encantou, quando subindo a Rua do Salitre - diante da Tipografia Império - me revelou: “O meu primeiro livro e a Mensagem do Pessoa foram impressos aqui.”

Tive a honra e o privilégio de privar com este expoente da cultura portuguesa, através da correspondência que mantivemos e de um cordial convívio, como naquela vez em que cheguei à Pensão Clara e ele disse ao Fernando Paulouro Neves, que o entrevistava, para o “JF”: “Este rapaz também faz versos!”



Luís Filipe Maçarico

[Esquisso do Texto para Catálogo de Exposição sobre a Correspondência de Eugénio Comigo, a realizar pela CMFundão] Almada, 25-3-2018





DOIS POEMAS DE EUGÉNIO DE ANDRADE



Canção Infantil[10]

“Era um amieiro./ Depois uma azenha./ E junto/ um ribeiro./ Tudo tão parado./ Que devia fazer?/ Meti tudo no bolso/ para os não perder.//”



Mulheres de Preto[11]

“Há muito que são velhas, vestidas/ de preto até à alma./ Contra o muro/ defendem-se do sol de pedra;/ ao lume/ furtam-se ao frio do mundo./Ainda têm nome? Ninguém/ pergunta, ninguém responde./A língua,pedra também.//”



AGRADECIMENTOS

Dr.ª Alcina Cerdeira (Vereadora da Cultura da CMFundão); Dr. Alfredo Flores; Dario Gonçalves; Dr. Eduardo Luciano (vereador da Cultura da CMÉvora); Pintora Mena Brito; Dr. Jorge Lopes (Núcleo de Documentação da CMÉvora); Lourenço António Nabais Pereira; Maria dos Anjos Pires Caniça.





[1] Andrade, Eugénio de “Poesia e Prosa”, O Jornal/ Limiar, Lisboa, 1990, p. 304.
[2] Ibidem., p. 288.
[3] Andrade, Eugénio de “Primeiros Poemas As Mãos e os Frutos Os Amantes sem Dinheiro”, Memória de António Lobo Antunes, Quasi, Vila Nova de Famalicão, 2ª edição, Maio 2008, p. 93.
[4] Andrade, Eugénio de “À Sombra da Memória”, Quasi, Vila Nova de Famalicão, 2ª edição, Dezembro 2008, p. 155.
[5] Andrade, Eugénio de “Poesia e Prosa”, O Jornal/ Limiar, Lisboa, 1990, pp. 307-308.

[6] Depoimento em 6 de Fevereiro de 2018.
[7] “Poesia, Terra de Minha Mãe”
[8] Ibidem.
[9] Depoimento escrito em 28-2-2018.
[10]  Andrade, Eugénio de “Primeiros Poemas As Mãos e os Frutos Os Amantes sem Dinheiro”, Quasi, Vila Nova de Famalicão, 2ª edição, Maio 2008, p. 14.
[11] Andrade, Eugénio de “O Sal da Língua Precedido de Trinta Poemas”, Prémio Vida Literária, APE Associação Portuguesa de Escritores, Biblioteca Prestígio, Barcelona, 2001, p. 38.

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