"Um Barco atracado ao cais é sempre um sonho preso"

segunda-feira, junho 11, 2018

ENTREVISTA A HENRIQUE ESPÍRITO SANTO*


                                                    Fotografia de Luís Filipe Maçarico

*Publicado na revista "Aldraba" nº 23, pp. 18 a 21.

[O CINEMA] “FOI UMA REVELAÇÃO QUE ME PERMITIU CONHECER MELHOR A VIDA E O MUNDO”



Henrique Espírito Santo é ele mesmo um Património.

Fundador de Cineclubes e Produtor de tantos filmes portugueses, Henrique tornou-se uma referência incontornável na História do Cinema Nacional. A Aldraba entrevistou-o ( e à esposa Guida) no seu ambiente familiar, numa casa repleta de boas memórias, de uma vida intensamente fruída.

“Quando comecei (anos 60) - principiou por nos dizer - a malta fazia publicidade, quando fazíamos documentários, ficávamos todos satisfeitos. Ainda fiz uma coisa gira com o Fonseca e Costa, grande amigo, com quem comecei a trabalhar, fizemos um filme patrocinado pelo Banco Português do Atlântico [hoje BCP] fomos contactados para fazer a inauguração do Banco, como documento para os arquivos do próprio banco e documentário, onde ele tinha sido construído (em Luanda), fizemos a reportagem sobre o meio onde o banco existe e chamámos a esse filme “O Regresso à Terra do Sol”.

Há uma frase que conto sempre….Sei que houve reunião da Administração do BPA. Passou como complemento no Monumental, e um Administrador disse: “Os rapazes são artistas, mas gostam muito dos pretos!”

O filme tem voz off do Orlando Costa [tinha firma de publicidade] era o autor do texto. O que é certo, é que nunca no filme há referência à Colónia. Quando se diz Luanda, diz-se Capital de Angola. E então, o Fonseca e Costa, o director de fotografia e do som, o electricista e eu, éramos a equipa para fazer coisas desse tipo!”



Henrique Espírito Santo produziu filmes em várias situações, foi director de produção e até actor: “Devo ter participado em, à volta de mais de cem filmes (curtas e longas metragens)…”

O nosso entrevistado contou-nos como surgiu o seu interesse pelo Cinema: “Na realidade, a origem é de facto aquilo que tenho dito: Os meus pais gostavam de cinema. Naquela altura, as crianças iam ao cinema, ao colo. Daí a influência…”

Henrique recortava os bonequinhos da revista “Mosquito”, para fazer filmes…

“Com os miúdos do prédio, do bairro. Nasci em Queluz. A mostra dos filmes na caixa de sapatos foi na Parede. Havia na Parede um daqueles cinemas ao ar livre…

[Como os pais eram cinéfilos] As brincadeiras andavam à volta do cinema.”

A primeira profissão de Henrique Espírito Santo foi descrita assim:

“Antes de terminar o Curso Comercial, comecei a trabalhar aos 13 anos. Naquela altura, os filhos começavam a trabalhar mais cedo, era uma ajuda para a família [comecei numa empresa de passagens e passaportes]. Era tudo para a Venezuela. Nesse tempo, acompanhava-os ali às Trinas, onde se tratava dos passaportes, das identidades. Eu acompanhava essas pessoas. Ganhava mais em gorjetas que em salários.”



À pergunta “fundaste e frequentaste Cineclubes. Que importância teve esse Movimento”? o nosso interlocutor respondeu que “Foi um dos movimentos mais importantes na luta contra o Fascismo. O cinema, tal como é conhecido, a chamada “Sétima Arte”, não é por acaso…Chamávamos escritores, actores, músicos, toda a gente ligada à Cultura, era quem convidávamos para fazer palestras. E essas sessões era uma maneira também de fugir ao controlo porque as colectividades facilitavam também. Essas associações culturais…Aí exibimos filmes com maquinazinha de 16m/m, livrávamos as pessoas, que não tinham de ir à Censura. A repressão apercebeu-se destas sessões. 

O Cineclube Imagem chegou a dar sessões nas prisões. Tínhamos um apoio muito grande da Embaixada Francesa. Tinham outra mentalidade, havia essa abertura maior.

Íamos buscar os documentários, íamos na “ramona” ( a organização e o representante da Embaixada) [Henrique sorri de orelha a orelha, deliciado, com a lembrança bizarra] íamos para a cadeia, que nos facilitava o transporte. A própria prisão é que “dava” a camioneta…

Os dirigentes de todos os cineclubes eram convidados para falar de cinema; isso permitiu-me p. ex. conhecer muita gente.

A Censura fazia cortes. Quem ia falar, tinha indicação que não podia ler o que tivesse lápis encarnado. Em Santarém li tudo. Na sala havia controlo e um amigo ouviu o inspector comentar: “O macaco leu tudo” [Foi sobre o filme “A Tortura”, sueco]

Ainda houve quatro encontros de dirigentes cine-clubistas. Na altura havia trinta e tal cineclubes (incluindo as ex-colónias)”



Este homem de Cultura revela constrangimentos daquela época: “Estive 30 dias nos “curros” do Aljube. Só saímos dali para ir à Rua António Maria Cardoso.[sede da PIDE] Foram a minha casa às sete da manhã. Fui preso. O motivo? Sempre por ser comunista! Um tipo falou, divulgou toda a actividade cultural. A partir daí fizeram interrogatórios, foram até à Célula do Cinema…”

“Antes de trabalhar no Cinema, já estava numa Companhia de Seguros. Sou chamado ao Palácio Foz, através de uma carta que enviaram à Companhia de Seguros. Tinha a ver com um filme espanhol que o cineclube apresentou. A Censura chamou-me. Então comentei: “Não percebo, isso é sobre Espanha. Isso é baseado numa revista autorizada e à venda nas bancas!”



A companheira de toda uma vida, assistiu a toda a conversa, intervindo algumas vezes. Henrique elucidou-nos, com humor:

“Encontrei-a na Lourinhã, quando ia visitar uma prima. É da terra dos dinossauros!”

A esposa sublinhou com sensibilidade: “O cinema foi o seu sonho de menino, realizado!”



Aldraba - Trabalhaste com Manoel de Oliveira, José Fonseca e Costa, João César Monteiro, António de macedo, Luís Filipe Rocha, Solveig Nordlund… Que filmes e realizadores exigiram mais de ti?

“Não só pela origem cineclubista, onde muitos realizadores estavam ligados, eu estava ligado à produção e nunca tive problemas, não me lembro de cenas desagradáveis.

O João César Monteiro entrou no Instituto Português de Cinema, num tempo em que tínhamos dificuldades de arranjar subsídios, entrou descalço, calças, camisa rotas, para pedir o subsídio. O Centro Português de Cinema era dos cineastas anti-regime e o César (que era intitulado por nós como “l’enfant terrible”), eu estava com o António Macedo, e o Cesar diz: “Acabei de ocupar o Centro Português de Cinema!” O Macedo ameaçou-o de lhe dar um murro. E o César respondeu: “Temos tempo para falar depois”…



Ocorreu-nos perguntar se um filme, a partir de um livro resulta bem?

“Os responsáveis pela ideia fílmica podem partir de algum livro. O “Cerromaior” é fiel ao Manuel da Fonseca. O realizador participa sempre no argumento, para estabelecer um acordo de identidade com a ideia. O autor acredita nas pessoas que vão fazer o filme. O Paulo Pires entrou pela primeira vez no cinema, no “Cinco Dias, Cinco Noites”

Voltando à prisão, “A Guida, quando estive em Caxias, visitava-me, estive na mesma cela com um indiano e o Orlando Costa morava aqui próximo, encontrámo-nos no mesmo restaurante, ia muitas vezes a Goa e procurou o tal indiano (Mohamadé?) que tinha todos os meses um dia de jejum e meditação…”

Aldraba - Quanto tempo estiveste em Caxias?

“Dezoito meses de pena e cinco anos de actividade política cortada.

Houve uma altura em que pensei que me iam bater, pedi-lhes um papel e escrevi “a actividade de um cineclube é…” Os tipos entraram pela sala (eu só não me ri) mas quando vi uma cena do chefe de brigada, Abílio Pires, - isso aparecia muito nos filmes policiais … Safei-me de levar uma carga de porrada… “Vocês estão com sorte. Têm muitos amigos no estrangeiro!”

Veio no “Le Monde”. Intelectuais como Marguerite Duras subscreveram pedidos de libertação!”

Aldraba - Antes de Abril de 1974, como foi fazer cinema?

“No “Recado” até se vê um Pide a matar um político que regressa ao país clandestino, num barquinho de pesca. Eram traficantes…O nosso protagonista não tinha relação com ninguém e quando é preso pela PIDE há a cena em que o chefe de brigada pergunta “Então, e o homem?” e o outro responde “Nem uma palavra!” [Estava encoberto] Tal como o Macedo consegue fazer o nú com delicadeza, o Fonseca e Costa não teve cena que tivesse corte…”

Aldraba - Travaste amizade com muita gente do Cinema Nacional e Internacional. Queres destacar algum actor/actriz?

“Fico sempre com a sensação que estou a ser ingrato. Felizmente, nos filmes em que participei, nunca me senti enganado. Todos eles tiveram princípios muito correctos.

Em “A Fuga” [o filme começava com interrogatório na António Maria Cardoso e não foi possível filmar no local ] os locais são todos autênticos. Fomos proibidos de filmar nas salas…”

Num aparte Henrique confessa a admiração tida por Geraldine Chaplin.



Aldraba - Tens lembrança da Tóbis, ou já não utilizaste esses estúdios?

“Eu pertencia à Direcção da Tóbis, mas ainda tive um período ligado mais ao Conselho Fiscal. O presidente da Tóbis antes (e permaneceu depois) era um homem que gostava do cinema…”

Aldraba – Produziste filmes de animação?

“Apareceu-me um jovem que fez um filmezinhi sobre o Franco, um tipo que depois rebenta (filme de animação), facilitei, mas nunca fui produtor. Eu era amigo do Carlos Barradas…”

Aldraba - E do Vasco Granja…

“Um divulgador. Também cineclubista. Estivemos presos ao mesmo tempo.”

Aldraba - Após o 25 de Abril, aconteceram certamente episódios dignos de realce. Queres partilhar algum?

“Fui nomeado para Director do Instituto Português de Cinema e tinha de vir no “Diário da República”, a publicação.

Cai o Governo da Pintassilgo. Eu sou automaticamente desnomeado.

O engraçado disto tudo é que a responsável do IPC vem ter comigo a rir dizendo que tenho ainda um salário, para receber, entre a nomeação e a exoneração.”

Aldraba - Trabalhaste em Televisão?

“Nunca fiz nada disso…No DVD do Miguel Cardoso, acrescenta os meus ateliers de crianças, o actor, a actividade docente [dei aulas na Escola de Cinema] para falar de Produção.

Em 1978 fiz a “sebenta” sobre como produzir filmes, como se deve actuar…”

Aldraba - Como se pode definir o trabalho do produtor cinematográfico?

“O produtor tem de se encarregar de arranjar dinheiro e tem de gostar de cinema. O Cunha Telles e mais recentemente o próprio Paulo Branco… O director de produção é o braço direito de um produtor, num filme. Eu era contratado para trabalhar com qualquer produtor…”

Aldraba - Como vivenciaste os prémios que filmes como “Tabú” obtiveram?

“Senti-me bem, fui a Berlim, andei no tapete vermelho. Felizmente que teve essa qualidade. Há filmes em que participei, em relação às minhas interpretações (realizadores amigos convidavam-me para uma espécie de Hitchcook) para ir daqui ali, dar uma palavra…”

Aldraba - Que valor tem o cinema no teu percurso, como ser humano?

“O valor do cinema …Por gostar de cinema e ir ver muitos filmes, ter passado a conhecer coisas que de outra maneira não conheceria.

Abriu muitos leques: Política, Família, Adultério, Perseguições…Foi uma revelação, que me permitiu conhecer melhor a vida e o mundo. Fui a Festivais…”

Aldraba - E como aparece o Prémio Sophia?

“O Prémio Sophia é de carreira (2014).

[Mostra vários troféus:7ª semana de Cinema Europeu da Covilhã/ Maio de 1998 – Homenagem Inatel; Coimbra/2004; Associação de Imagem, Cinema e Televisão/ 2012; Fantasporto/ 2014 e posa, sorridente, com estas magníficas distinções.]

Anoiteceu. O tempo voou, lesto, ao longo desta conversa cordial, recordando a carreira luminosa. Henrique ficará para sempre na nossa memória e no património comum que é o cinema.



Entrevista de Luís Filipe Maçarico e Maria Odete Roque.

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