"Um Barco atracado ao cais é sempre um sonho preso"

quinta-feira, março 16, 2017

Estereótipos que a realidade ultrapassou, na revista à portuguesa e no cante alentejano


A Lisboa actual - que uma parte das pessoas teima em não ver, gritando, como resposta aos que apontam os perigos da turistificação, existindo uma espécie de DisneyLisbonlandia - o seu amor à cidade, onde nasceu, cresceu, amou, etc., é para os mais atentos um cenário, uma montra de vazio, onde é possível recuperar prédios, para transformá-los em alojamento local, hostéis, hotéis e condomínios de luxo, empurrando os pobres para fora do centro. Ou seja: matando a identidade de moradores que criaram uma forma genuína de existir...
Dizem que Alfama perdeu metade da população... lemos, ouvimos e vemos...

No telejornal da RTP, há duas semanas, uma senhora que vai perder a sua residência, na Mouraria, juntamente com mais de uma dezena de moradores, num edifício comprado por empresa que fez ultimato aos habitantes idosos, comentava mais ao menos assim: "Se é o povo que faz os santos populares e as marchas, daqui a uns anos serão os estrangeiros a desfilar na avenida, em nome deste bairro?"

O próprio presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, em recente entrevista ao "Diário de Notícias", repetiu o que há alguns meses alguém escreveu, em alerta, num periódico: "Estão a matar a galinha dos ovos de ouro!"
A sangria de habitantes (votantes) obrigou os autarcas e os candidatos de diversos partidos a mudarem de registo. Vozes que hoje se inflamam contra a injustiça, estiveram a dormir há uns tempos atrás...quando já era bem visível esta mudança - violenta - sobre o povo dos bairros históricos.

Contudo, nas revistas à portuguesa, esta realidade não surge nas críticas à governança da cidade e do país...salvo raras excepções que podem até existir mas desconheço.
As revistas sempre tiveram essa coragem de desancar, em linguagem dúplice, metafórica, os figurões da política, patronos de regras que "não lembram ao careca"...

Continuamos escutando melodias, que celebram Lisboa, navegando em estereótipos, onde abundam as míticas referências às varinas, que já não encontramos nas ruas (as últimas estão reformadas e baralhadas da memória) e de profissões e lugares evaporados, na voragem de um tempo avassalador onde tudo se reinventou, da casa do tradicional pastel de bacalhau com queijo da serra ao mundo fabuloso da sardinha portuguesa, numa estética kitsh para indrominar turistas, vistos como fonte de receita estupidificada, que na sua ignorância compram o falso pelo verdadeiro....
E nada disto é ridicularizado nos textos declamados por profissionais e amadores de teatro, que estou certo dariam sketches bem divertidos, pelos equívocos que tais situações geram.

O mesmo se passa no Alentejo e numa das suas artes, elevada a património imaterial da humanidade...para lá dos múltiplos aproveitamentos, que podem desvirtuar o que é genuíno...
Algum cante alentejano continua a exaltar o mito salazarista do "celeiro da nação", porém a realidade é que hoje não são os trigais que inundam o território, mas oliveiras de curta duração e produção intensa, que como o "Público" de ontem noticiava, metade do olival e três quartos do amendoal do Alqueva,  estão nas mãos de espanhóis.

Não quero com isto dizer que os autores das modas façam a actualização dos versos, mas que pelo menos os grupos pudessem cantar o que é eterno: a terra, os homens e os bichos, para glosar o título de um maravilhoso livro de João Mário Caldeira, escritor maior da margem esquerda, deixando de lado o que está datado, o que é passado, mais ideológico e menos etnográfico.

O vinho é outra das produções para exportação, todavia quase todos os poetas não referem estas realidades e continuam falando dos estigmas que atingiram gerações envelhecidas, que importa guardar na memória colectiva. Mas o Alentejo é um espaço desmedido de inspiração e tudo está em mudança...
Os portugueses deveriam ir ao psiquiatra, para saírem da ficção onde estão petrificados, atrevendo-se a representar, cantar e escrever mais sobre o quotidiano que se desenrola à sua volta...


Luís Filipe Maçarico (texto) Imagens recolhidas na Internet

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