"Um Barco atracado ao cais é sempre um sonho preso"

segunda-feira, maio 12, 2014

Memória e Olhares Etnográficos Sobre a Senhora da Saúde

Quando era miúdo, minha avó, mulher do povo, que viera muito nova, de Sant'Ana da Carnota (Alenquer) para Lisboa, a fim de servir famílias abastadas, levou-me à Procissão de Nossa Senhora da Saúde.
Nesse tempo, Gertrudes Thomaz vestiria a Senhora, que todos os anos muda de roupagem e assistiria à passagem do cortejo, numa varanda estratégica. Actualmente, Maria Silva cumpre esse devir.
Logo no início, circulava um camião de caixa aberta, de onde eram atirados molhes de rosmaninho. Hoje há mulheres a vender, nas imediações...

Era o tempo da Guerra Colonial e por isso, havia fuzileiros, paraquedistas, comandos.
Enfermeiras e médicos desfilavam e todas estas corporações, se misturavam com o enorme cordão humano dos participantes, trazendo emblemáticos arranjos florais, com menção da sua origem profissional.
Escuteiros e anjinhos, alunos do colégio militar, eram aos magotes.
Nos dias de hoje, o que aparece é uma representação residual. 

Na década de sessenta, a Mocidade Portuguesa Feminina surgia, ao pé da imagem da Senhora da Saúde, - havendo uma fotografia que documenta isso, na net - e a Legião Portuguesa, também marcava presença.
Havia muita gente a integrar-se atrás do pálio. E muita assistência.

Nos anos noventa, tornei a assistir à passagem da Procissão, na Rua do Benformoso, tal como hoje. 
E os meus "ouvidos de tísico" registaram comentários, de algumas mulheres, sem papas na língua, tal como aquela, que alto e bom som, afirmou: "Olha-me para aquele... já viste a "mala"que ele tem?" (a moradora referia-se aos genitais de um militar, que desfilava e teria atributos, que ela avaliou, olhando para a farda...)

Como em todas as cerimónias religiosas deste tipo, há um comércio de cariz sagrado, associado.
Vendem-se velas, medalhinhas, figuras da Senhora, em postal e em registos mais reduzidos, para colocar nos missais ou em sítios, onde ela proteja os crentes.

O Presidente da Câmara, qualquer que seja (e cheguei a ver Abecassis, Sampaio, Santana e agora Costa) integra-se, com o colar simbólico. Santo António antecede-o, levado pelos bombeiros.

São Jorge é o primeiro a aparecer, "descendo" do Castelo, até ao Martim Moniz, para seguir, sentado num cavalo, com a guarda montada da GNR - ou charanga, que passa o tempo a rufar tambores e executando hinos, apropriados ao contexto.

São Sebastião é insubstituível. Protector contra as pragas, junta-se à Senhora que, segundo reza a lenda terá protegido a capital do reino, da Peste Negra, sendo os derradeiros e principais protagonistas, com respectivas irmandades.
Todos os santos cujos andores são incorporados na iniciativa, são transportados por forças militares ou de segurança pública e acompanhados pelas bandas da arma destacada.

O evento realiza-se, segundo a "Breve Notícia Histórica sobre a Irmandade e Procissão de Nossa Senhora da Saúde e de S. Sebastião", folheto de oito páginas, sem indicação da autoria e data da execução gráfica, que se consumou no Entroncamento, desde 1570, sendo talvez a mais antiga do País e a maior de Lisboa.
Mas o fulgor religioso de outras eras, que Amália cantou em Fado (curiosamente esta tarde, a aparelhagem de som, junto à capelinha, partilhava uma interpretação da Diva, alusiva ao festejo, celebrando a Entidade Celestial, que reside há séculos na Mouraria), pode fazer jus à frase "A tradição já não é como era dantes"...

Na Rua do Benformoso existe um painel de azulejo, oferecido pela comunidade oriental residente, à Senhora da Saúde. A interculturalidade, patente na Mouraria dos nossos dias, evidencia-se, durante a procissão, fotografando da janela ou no passeio, misturando-se com o povo da cidade que acorre a esta Romaria ancestral. Milhares de pétalas chovem das varandas, engalanadas com colchas vistosas.

Percebe-se, observando os diversos momentose intervenientes, que, exceptuando a juventude dos militares, que por dever, foram escalados para a cerimónia, esta é uma festividade, essencialmente de velhos, que receberam, na sua prática de crentes, a herança de continuar a acompanhar o andor da homenageada.

São visíveis, as classes sociais, quer dos que ficam no passeio, impedidos pela polícia de entrar na função, quer dos que no cortejo pavoneiam uma pertença, que finge ignorar determinadas proclamações de Cristo, ostentando vestimentas, jóias e um espírito mundano, alheio a um olhar piedoso, sobre os que sofrem, porque "cada um é para o que nasce..."
Não foi por acaso que a procissão esteve interrompida entre 1910 e 1940 e entre 1974 e 1981...


Referências Bibliográficas:

Breve Notícia Histórica sobre a Irmandade e Procissão de Nossa Senhora da Saúde e de S. Sebastião", s/d

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