"Um Barco atracado ao cais é sempre um sonho preso"

terça-feira, julho 02, 2013

Cesário Verde, o Poeta de Lisboa que a Capital Ignora

Em Maio, no final das Jornadas de Cultura Popular de Viana do Castelo, tive o ensejo de falar com a Vereadora da Cultura da Câmara local, Professora Maria José Guerreiro, que no ano anterior tinha conhecido, durante o lançamento do livro de José Figueiras, onde colaborei, "Por Feitiço, Por Magia", na Biblioteca Municipal.
Falámos então de um problema, a meu ver grave, que é o facto dos alunos de Português, face aos actuais programas, desconhecerem poetas importantes, cuja obra muito contribuiu para o enriquecimento da língua e da cultura lusa. Fiquei estarrecido, pois desconhecia, com tão grande aberração...
Ainda sou do tempo em que - não obstante se viver em regime totalitário - tínhamos de estudar as Cantigas de Escárnio e Maldizer, as Cantigas de Amigo, poetas e escritores como Almeida Garrett, Antero de Quental, Bocage, Camilo Castelo Branco, Camilo Pessanha, Cesário Verde, Eça de Queirós, Fernando Pessoa, Florbela Espanca, Gil Vicente, Guerra Junqueiro, Júlio Dinis, Luís de Camões, Nicolau Tolentino de Almeida e tantos outros...

Basta frequentarmos as redes sociais, para constatarmos o deserto cultural a nível da escrita dos protagonistas. Os erros são em demasia. E um deles, constante, é trocar o à pelo verbo haver (há). Ou seja, em vez de escreverem "eu fui até à praia", é usual ler-se "eu fui até há praia"...
Perante um panorama tão desolador, fruto de uma colossal falta de leitura, não admira que na capital não haja uma evocação, ao grande cantor da cidade que foi Cesário Verde (Lisboa, 25 de Fevereiro de 1855 - Lumiar, 19 de Julho de 1886).
Não falo de uma estátua, que existe num jardim, ali para os lados da Estefânia, não falo de nome de rua, nem de lápide na casa do Lumiar, onde faleceu.
Falo de um espaço, tipo o que existe no Azeitão, lembrando Sebastião da Gama, ou em Portimão, evocando Manuel Teixeira Gomes, ou mesmo em Lisboa, homenageando Pessoa.

 
Curiosamente, Álvaro de Campos (heterónimo de Pessoa) considerava-o Mestre ( "Das ruas ao cair da noite, ó Cesário Verde, ó Mestre,/ Ó do «Sentimento de um Ocidental»!").
Será que se pode encontrar uma mão cheia, de presidentes de Junta de Freguesia, que tenham lido Cesário? E quantos vereadores da Câmara Municipal de Lisboa conhecem a sua obra?
Entretidos a gerir (o trânsito, os Jardins, e tantas coisas corriqueiras), os coitados têm lá tempo para ler Cesário Verde, para perceberem, porque razão inúmeras vezes, as Marchas, a cujo desfile assistem, entediados, na tribuna da Avenida, cantam "A Lisboa de Cesário" ou "Os pregões da Lisboa de Cesário"...
Por isso, Cesário Verde, como outros poetas, ignorados, morreram segunda vez, face a tanto esquecimento...
Mas como há sempre alguém que não se rende à ignorância e à falta de memória, aqui fica a primeira parte, da imensa tela que é "O Sentimento de Um Ocidental", um dos poemas, onde Lisboa é retratada por Cesário Verde. Digam lá se este poeta, cuja vida foi muito breve,  não é digno da tal celebração?
               I

           Avé-Maria

    Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

    O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.

    Batem carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!

    Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.

    Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;
Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.

    E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

    E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinir de louças e talheres
Flamejam, ao jantar alguns hotéis da moda.

    Num trem de praça arengam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!

    Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.

    Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

    Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecção!
Cesário Verde
 


Texto, fotografias e recolha de Luís Filipe Maçarico

2 comentários:

Egas Branco disse...

Recordo uma magnífica teatralização da poesia do Cesário Verde, dita por Teresa Gafeira. Mas foi em Almada, num espectáculo que teve honras de inauguração, em Julho de 2005, do novo Teatro Municipal, pela CTA (Companhia de Teatro de Almada), dirigida então pelo saudoso Joaquim Benite, que também encenou (agora há uma nova geração em quem confiamos muito para continuar a obra de Benite). Mas é verdade: teve que ser em Almada! Um abraço

Egas Branco disse...

Recordo uma magnífica teatralização da poesia do Cesário Verde, dita por Teresa Gafeira. Mas foi em Almada, num espectáculo que teve honras de inauguração, em Julho de 2005, do novo Teatro Municipal, pela CTA (Companhia de Teatro de Almada), dirigida então pelo saudoso Joaquim Benite, que também encenou (agora há uma nova geração em quem confiamos muito para continuar a obra de Benite). Mas é verdade: teve que ser em Almada! Um abraço