"Um Barco atracado ao cais é sempre um sonho preso"

terça-feira, setembro 26, 2006

JORGE RUA DE CARVALHO: O HOMEM PÁSSARO QUE VIVERÁ PARA LÁ DA VIDA


"É para mim um extraordinário privilégio apresentar Jorge Rua de Carvalho, este ser multifacetado cujo percurso comecei a seguir de perto há doze anos.
“Retalhos da Vida Saloia” é o quarto livro deste autor com quem convivi na I Festa das Colectividades, na Arruda dos Vinhos e Alpedrinha, quando nessas terras representou os Pregões de Lisboa, e nesta última tive o prazer de estar ao seu lado dizendo poemas, nomeadamente na Capela do Leão, onde o Jorge foi inexcedível e arrebatou a plateia que o aplaudiu de pé.
Acompanhei Jorge Rua de Carvalho nas suas exposições por escolas, associações e bibliotecas.
Escutei com atenção o testemunho da sua experiência, tive a honra de representar ao seu lado e escrevinhei uns textos para sketchs que ele apurou.
Um homem assim é da nossa família.
Por isso, queremos que viva muito, porque com ele aprendemos sempre!

Jorge Rua de Carvalho é um herói.
Fez do quotidiano um espaço mágico de convivência, vencendo a doença e a solidão, que costumam ensombrar a existência dos mais velhos.
Jorge rejuvenesceu nas páginas onde revisita a infância.
Respirou o oxigénio das palavras, para enfrentar os sobressaltos da vida.
E não pára de sonhar!
Solidário, pertence ainda ao Conselho Fiscal dos “Combatentes”, há um ano e meio fundou a “Aldraba” e aceitou o desafio de escrever um novo livro para partilhar as suas memórias do Associativismo.
Tenho-o seguido nos últimos tempos pelas ruas de Lisboa, nos miradouros e eléctricos, percebendo o quanto a cidade significa num imaginário que repovoou de saloios e pregões.
Para lá das sílabas, escreveu poesia na madeira, produzindo uma exposição magnífica sobre pregões que sucedeu a uma primeira, idealizada para imortalizar as recordações das brincadeiras da infância.
No fim de semana de 7 e 8 de Outubro, Jorge Rua de Carvalho irá ao Festival do Chícharo, em Alvaiázere, para apresentar as duas centenas de bonecos que criou com carinho de pai.
Como Geppetto idealizou dar forma à madeira, esculpindo figuras às quais se afeiçoou de tal maneira que me parece fazer todo o sentido criar um Museu com estes trabalhos que contam a história da cidade dos humildes e laboriosos, da criatividade dos simples.
Todavia, ao contrário de Pinóquio, os bonecos de Jorge Rua de carvalho falam a linguagem da verdade. São património e identidade. Espelhos da memória que iluminam o silêncio.

O livro, após as notas biográficas e o prefácio percorre umas saloiadas soltas onde se caracteriza a figura do saloio – gente sã, alimentadores de Lisboa, que levam o grão ao moinho, amanham a horta, trabalhadores do campo de sol a sol, vendendo depois o produto do seu trabalho para sustento da família mas que ainda têm tempo para se divertir nas feiras e romarias.
As primeiras férias introduzem o tema: Jorge tem dez anos, acabou de fazer o exame da quarta classe e o pai polícia, “orgulhoso de mim, ou talvez arrependido das sovas que me dera, resolveu recompensar-me” (pág. 21)
É assim que o miúdo é metido num comboio a caminho de Sobral da Lourinhã.
A partir daí, as descrições são uma delícia e o livro desenrola-se como um filme em que reconhecemos personagens que pertencem ao nosso imaginário, que o cinema português retratou, e tudo à nossa volta exaltava: o mundo rural povoado de gente laboriosa e humilde, com a sua cultura, a sua sabedoria, que constituía então a maioria da população.
Não admira que no epílogo Jorge escreva “sem dar pelo tempo passar, continuo à janela, com a cabeça entre as mãos, meditando, esperando, sem eu próprio saber por quem ou porquê” (p.72)
É natural num tempo tão diferente ter saudades e recordações dos dias felizes “cantinho delicioso do paraíso” (p.72)
Na página 24 do livro Jorge descreve assim a sua chegada:
“Olhei em volta, deslumbrado com a beleza dos fascinantes e variados tons verdes do arvoredo, das vinhas e das hortas, contrastando com as bandeirinhas dourados dos campos de milho que cercavam a brancura das casas do povoado.”
Senhor de uma escrita sem artifícios muito visual, colorida, próxima da oralidade, Jorge Rua conseguiu escrever um grande livro juntando os fragmentos da memória e do esquecimento, onde procura o rigor dos factos e cenários, embora nesse esforço de reconstituição dos acontecimentos, o factor efabulação acabe por condimentar os diversos takes do enredo, moldando as falésias da memória com a sedimentação das vagas e ventos do olvido para citar Marc Augé.
O livro prossegue com a apresentação da casa dos tios, seguimos os protagonistas nas idas à horta, ao moinho, à feira, saboreando uma narrativa riquíssima de sequências fílmicas recheadas de vocábulos e ritmos envolventes.
A matança do porco, a desfolhada, os saloios na cidade e a descrição de uma teimosia do “Pataco” (burro é sempre casmurro”) são outros capítulos que se lêem com bastante agrado.
Maria José Lascas Fernandes, mulher de uma escrita poética marcante foi a ilustradora, que soube transmitir com mestria e puerilidade as ambiências do livro.

Todos nós tivemos uma aventura assim numa qualquer terra onde havia um tio, uma prima, uma avó, frutos, arvoredo, festas, silêncios, lendas e a magia da infância.
Se não tivemos, ouvimos falar ou lemos.

Este livro evoca a nostalgia do lugar a que pertencemos. E este homem é o resultado do que podemos ser quando sonhamos. Cada livro seu é um capítulo do romance da sua existência fantástica.
Jorge Pássaro, Jorge Sempre Menino, Jorge Amigo, Jorge Irmão, Jorge Eterno.
Prometo-te que viverás para lá da vida, no nosso coração, na nossa memória, nos nossos textos, no amor fraterno que dedicamos aos nossos Maiores.
Obrigado por tudo o que continuas a dar-nos, com tanta qualidade e carinho.
Bem Hajas pelo exemplo da tua Vida!

Lisboa, 23-9-2006

LUÍS FILIPE MAÇARICO

Foto de LFM: Jorge Rua de Carvalho durante a homenagem nos "Combatentes".

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