"Um Barco atracado ao cais é sempre um sonho preso"

domingo, novembro 04, 2018

UMA CASA ASSIM, DO TAMANHO DO DESTINO, FICA TATUADA NA PELE E NA ALMA



Na passada segunda feira 29 de Outubro, durante o lançamento de "Uma Casa É Como Uma Árvore Por Dentro" li o seguinte texto, da minha lavra, para contextualizar a aparição deste volume de Poemas (o 22º): 



Mia Couto escreveu que “O importante não é a casa onde moramos, mas onde, em nós, a casa mora” (in “Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra”)



E Manuel António Pina diz “assim chega o viajante à tardia idade/ em que se confundem ele e o caminho” (“Como se desenha uma casa”, p. 13) acrescentando: “Para trás ficam portos, ilhas, lembranças,/ cidades, estações do ano (…) a porta está fechada na palavra porta/ para sempre” (Ibidem, p. 17)



Quando elaborei “Uma Casa É Como Uma Árvore Por Dentro”, juntando poemas dispersos, escritos durante a caminhada, senti que se fechava um ciclo de vida - um longo ciclo de vida; um tempo longo de mais de seis décadas, onde a casa era o cais de chegadas e partidas.



Recordo Eugénio de Andrade: “Às vezes entra-se em casa com o outono/ preso por um fio,/ dorme-se então melhor,/ mesmo o silêncio acabou por se calar” (“O Sal da Língua”, p. 30) São ainda do Poeta de “Com Palavras Amo” estas estrofes: “No meu corpo uma casa se levanta./ sem portas, sem paredes, sem telhado” (Op. Cit. P. 89)



Tudo começou nos distantes anos 50 do século XX, quando a criança que fui, perseguia com o olhar o voo dos pássaros sobre as árvores do largo e a azáfama dos transeuntes, na ida para o trabalho ou para as compras.

Via as varinas, os saltimbancos, os vendedores de hortaliças, que chegavam nas carroças e as procissões compassadas, que convocavam multidões de devotos, desfiles da cavalaria de honra da GNR, acompanhando embaixadores e outras individualidades, rumo ao Palácio das Necessidades e a famosa Maria Rapaz descendo dos autocarros, em andamento, com cigarro ao canto da boca e pés certeiros chutando bolas feitas de meias velhas.

Via tudo isso desde o parapeito- beiral da janela, sonhando viagens, para lá do horizonte, para conhecer o Mundo.



Amadeu Ferreira, sob o pseudónimo de Fracisco Niebro, adverte “nunca esqueças o caminho para a casa/ (…) porque o caminho para casa/ é feito de memória” (“Ars Vivendi Ars Moriendi”, p. 108)



A casa foi lugar de alegrias e lágrimas, de solidão e abraços; ali despertei para a leitura e a escrita, tão estimulantes. Eugénio de Andrade confirma: “Todas as casas onde há livros e quadros e discos são bonitas”. Era linda a minha velha casa!

Um corrupio de rostos e vozes invadia esse palco de emoções e ausências. Na constante aprendizagem dos dias, na luta pela sobrevivência, a casa foi o ninho onde congeminei sonhos e projectos, renascendo das cinzas que o desencanto e a traição originam.



Muitas vezes, como Sophia de Mello Breyner Andresen indica “Em redor da chama/ Que a menor brisa doma/ E que um suspiro apaga/ A casa fica muda (…) Apenas se ouve o bater do relógio do tempo” (“Geografia”, pp. 37-39)



Pela casa amei, cantei, sorri, sentindo a Natureza renascida ao espreitar na vidraça das janelas, e entre suspiros e mágoas, vi o jardim em frente despir-se das folhas cobreadas, que antes tinham sido refulgentes, de verde.



Uma casa assim, que é do tamanho do destino, entre paredes, segredos e mistérios, fica tatuada na pele e na alma. Mesmo depois de a deixarmos. Ouçamos Pablo Neruda, em “Plenos Poderes”: “Pergunto-me, onde/ está a cidade? (…) / Agora onde estou outras vidas há/ (…) Devo encontrar em mim os ausentes,/ (…) e dalguma forma decidir/ onde plantar as árvores novamente” (Op. Cit. Pp. 111, 113,115 e 117)



Não poderia deixar de vos dizer que a habitação tornou-se num direito ameaçado.

Como se sobrevive com pensões miseráveis? Que comem aqueles que têm de dividir a magra maquia com medicamentos? E quem poderá pagar rendas subitamente elevadas, sem possuir recursos? Para onde vão viver as pessoas despejadas que não têm alternativa?



No meu caso, no quarto onde em criança a chuva caía na cama, aos 63 anos, no dia seguinte a ter apresentado o “É de Noite Que Me Invento”, choveu ao pé do ouvido, tendo acordado sobressaltado com o regresso ao passado.

Colocado na situação limite do “tem direitos adquiridos, mas os co - proprietários não vão fazer obras”, optei por deixar Lisboa e rumar à margem sul.



O final não é feliz. Há um sabor a exílio, a perda irremediável na nova morada. E de acordo com o que acontece no Planeta, continuo a tentar participar, no sentido do Futuro não ser pior. Foi Bertolt Brecht que escreveu:

“Nos velhos livros vem o que é ser sábio:/ Manter-se alheio à luta do mundo, e o curto tempo/ Passá-lo sem receio./ Também viver sem violência/ Pagar o mal com o bem/ Não satisfazer os desejos, mas esquecer/ Vale por sábio./ E tudo isso é que eu não posso:/ Em verdade, vivo em tempos escuros!” ( “Poemas e Canções”, p. 246)



Almada, 9 e 12 Outubro 2018      



Luís Filipe Maçarico (texto) Autores Vários (Fotografias)

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