"Um Barco atracado ao cais é sempre um sonho preso"

terça-feira, maio 26, 2015

PASTOREANDO A PAZ, NO ENCONTRO DE CULTURAS. UNINDO O MEDITERRÂNEO COM A POESIA










Eis o texto da apresentação, da reedição do livro "Os Pastores do Sol", apresentado no 8º Festival Islâmico, no passado dia 22 de Maio de 2015:

PASTOREANDO A PAZ, NO ENCONTRO DE CULTURAS. UNINDO O MEDITERRÂNEO COM A POESIA

Foi numa ida ao Quartier Latin, no final dos anos 80 do século passado, e após um excelente repasto, no restaurante Chez Saad, que decidi visitar a Tunísia. Aquela tão mediterrânica salada tunisina e a hospitalidade luminosa, conquistaram o coração dos comensais, que haveriam de ser companheiros na futura viagem, em Agosto de 1991.

Munido de um caderno de viagem, onde colava rótulos de água mineral ou dos torrões de açúcar do café de Paris da avenida Habib Bourguiba, bilhetes de comboio informatizados ou de autocarro, entre a capital e os confins à beira do deserto, comecei por escrever as minhas impressões poéticas, em El Kef, Houmt Souk ou no oásis das 200 mil árvores e das 200 nascentes de água doce, frente ao Chott El Jerid e ao Sahara.

Novas viagens fizeram-me conhecer quase todo o território, de Jendouba e Bizerte a Tataouine, Chenini, Douz e Khsar Guilane. Numa delas, em Abril de 1903, com as colegas de licenciatura, Alexandra Leandro e Cláudia Casimiro, conhecemos entre Tunis e Sfax, no comboio para Gabés, a professora Fatma, com os seus três filhos, Wafa, Mouna e Aïmen, com quem interagimos. Rabisquei o poema “Les Bergers du Soleil” e um desenho de café.
Um mês depois do regresso, recebi em casa, uma carta do pai das crianças, convidando a visitar o arquipélago das Kerkennah, pois as meninas e o rapaz, ainda falavam de nós… Estava encontrado o tradutor para árabe, - o conselheiro municipal de Remla e docente de francês do secundário, Professor Ezzeddine Mansour, cujo rasto perdi durante mais de uma década, até há cerca de um mês atrás, quando me escreveu, revelando que os filhos, agora adultos, organizaram as suas vidas e ele mesmo está aposentado. Haverá coincidências?

Reunidos os versos, a partir de alguns cadernos iniciais, dos 14 que fui redigindo, havia que apurar a tradução em francês. Juntei então dois bons amigos: Rodrigo Dias, pintor (autor de capas de livros meus) e também poeta, que viveu em França e Raja Litiwinoff, cidadã alemã, de ascendência russa, que se ocuparam dessa fase fundamental, dado que o livro chegou a viajar até Poitiers, à Festa do Mundo, na Rua dos Três Reis, graças a parceria da Escola de Formação Profissional do Fundão, então dirigida pelo Dr. João Manuel Santos Costa, que foi a editora da segunda edição dos “Pastores”, com Le Toit du Monde, ONG enraizada na Comunidade gaulesa e entre a emigração existente naquela cidade. A apresentação em França, ocorreu em Maio de 1996.

Um ano antes, na Biblioteca de São Lázaro, a mais antiga de Lisboa, com o adido cultural da embaixada tunisina, Mohamed Bougamra, no castelo de Leiria, com o TE ATO e no Teatro Clube de Alpedrinha, “Os Pastores do Sol”, estrearam-se em Portugal, tendo os jornais de Leiria feito eco do agrado, que a aparição de uma obra trilingue tinha causado. Carlos Fernandes, no Região de Leiria, afirmou que se tratava “ de escrita muito parcimoniosa, mas com um espaço imagético lampejante (…) É espantoso como, em meia dúzia de versos, ele nos desenha autênticos frescos, repassados de luz e de movimento”. Orlando Cardoso, no Jornal de Leiria, celebrou os “poemas repletos de uma claridade só possível na cal dos caminhos do Sul” e Fernando Paulouro Neves, no Jornal do Fundão assinalou que “como em Eugénio de Andrade, emerge da poesia de Luís Maçarico um louvor às coisas elementares, ao sol, à água e à terra.”
O Jornal La Presse de Tunis teve a mesma simpática ressonância. Em 1995, assinala que se trata de “joli message d’amour”. Mohamed Lotfi Chaibi, um ano depois, exulta: “On ne s’en doute pas, Maçarico (…) est un chantre de la mer, des rivières et des sources.”

Para mim, é inolvidável o momento da entrada, no restaurante “Le Soleil”, em Tozeur, quando deparo com o livro numa parede, com marcas evidentes de ter sido amplamente desfrutado, lambuzado de nódoas dos comensais, para quem estes versos constituíram sobremesa espiritual. Ou a noite em que Kamel, empregado do restaurante Central de Houmt Souk, a capital da Ilha onde Ulisses viu sereias, me apresentou à família camponesa, dirigida pela matriarca, tendo comido com eles, um couscous da mesma gamela, celebrando o acontecimento do clã ter discutido na véspera, os meus poemas.
Salem Omrani, então estudante do curso superior de animação cultural, veio duas vezes a Portugal, com a incumbência de ler versos deste livro, - que acabou por prefaciar, - nas sessões poéticas, realizadas em colectividades de Lisboa e Alpedrinha.

Nos vinte anos destes “Pastores” há inúmeras estórias que se cruzam.
Ainda os poemas nasciam nos cadernos de viagem, quando Nouri Slah, recepcionista da Residence Warda, de Tozeur, me interpelou acerca da estranheza daquela língua em que eu me exprimia e ele não compreendia. Pediu-me então que traduzisse para francês a forma como olhava para a sua terra, pois queria entender o que eu sentia. Quando se apercebeu do meu olhar, perguntou-me onde iria eu jantar… “Au Soleil”, informei. “La, la la…Vous alez chez moi. Vous êtes mon invité. Il faut que vous allez connaitre ma famille et manger chez moi.”

Em Portugal, no último dia do primeiro ano de existência do livro, houve um suicídio interrompido, em que o jovem que decidira atirar-se à passagem do comboio da Beira Baixa, quis primeiro saber o que era um poeta, pois lera a propaganda colocada nas montras das lojas e cafés, e graças à poesia, salvou-se!
Aconteceu também um choque emocional profundo, quando no dia do meu aniversário, em Tozeur, encontrei um morabito dedicado ao poeta nacional tunisino Aboulkacem Chebbi, deixando por lá um exemplar do livro, cujo director desejou todas as benesses de Allah ao viajante.
Ficou na Biblioteca Nacional em Tunis, no Ministério da Cultura, nas mãos de Yvette Lejeune, uma francesa da Bretanha, com quem me cruzei em Jerba, no mesmo hotel/albergue das antigas caravanas do deserto, que já visitou Portugal, graças ao nosso encontro, onde eu pintava com café e ervas, e ela com especiarias…
Porém, um poema foi alvo da patrimonialização por parte de uma magrebina, que assumiu o poema, em francês, dedicado ao “poeta das areias sem mar”, como se tivesse sido ela a autora.
Com a globalização, usufruímos de uma aproximação noticiosa, cultural e científica, nunca dantes experimentada, como do abuso dos que não possuem limite para a sua gula plagiadora.

Na edição de 2014 do Festival da Transumância, “Os Pastores do Sol” reapareceram, numa reedição que a GM, graças à dinâmica e fraterna Glória, em boa hora fez renascer. A edição inicial fora produzida nas velhas máquinas da Ramos, Afonso & Moita, pelos saudosos senhores Mário e Fernanda, que tinham a sua oficina na Rua da Voz do Operário.

A capa, da autoria de Francisco Pedro, onde o vulto de um pastor, emerge de um recorte de uma notícia de imprensa invertido, embora bela, afligiu-me, por nenhum de nós saber árabe. Já com o livro impresso e uma centena de exemplares na mochila, foi ao chegar a Jerba, que descodifiquei e acalmei os receios, pois temia que fossem informações acerca dos conflitos que tornam o médio oriente num permanente caudal de sangue. Mabrouk Ghomrasni sossegou-me: afinal falavam de futebol, aqueles recortes. A risada geral ajudou a descomprimir noites mal dormidas, de inquietação.

E assim chegaram a Mértola estes “Pastores do Sol”. Termino com o excerto de um poema de Aboulkacem Chabbi, escrito no tempo em que a Tunísia era uma colónia de França.
Porque encontro semelhanças com a actual situação portuguesa, aqui ficam as suas palavras, que traduzi livremente, a partir da versão francesa:

“Nasceste livre como a aparição da brisa
Livre como a luminosidade do céu matinal
(…)
Porquê aceitar a vergonha de uma vida aprisionada
Porquê baixar a fronte diante dos que te dominam?
(…)
Acorda, toma os caminhos da vida,
Pois a vida não espera por aqueles que dormem

Sorve o perfume das rosas matinais
A dança dos raios solares
O espelho das águas!

Aboulkacem Chebbi




Luís Filipe Maçarico, 20-5-2015

2 comentários:

Mar Arável disse...

Tudo pelo melhor

Abraço

Mar Arável disse...

Tudo pelo melhor

Abraço