"Um Barco atracado ao cais é sempre um sonho preso"

terça-feira, maio 31, 2005

"Era Uma Vida Triste!..."


JOSÉ AFONSO, 90 ANOS, BENS

“Era pelos cerros velhos, ia por além. Vão lá os carros. Então ê andei trinta e seis anos nessa rebera!...Trinta e seis anos andei ê no contrabando. Isso é uma rebera malinha! Eram mais de mil tiros! Carabineros e guarda - fiscal, uns e outros.
Olhe, aqui de roda do monte tem aí uns vinte calvários…Pois! Cargas que perdi!
(…) Na minha presença mataram…você ouviu falar no Raposo? Mataram-no ali ao Moinho das Juntas!... (…) O guarda fez o tiro para ali e não matou mais porque não calharam. (…) Então não sabiam? Pois a gente passava por todo o lado! (…) Aí às juntas ajuntava-se o Margão com a Chança. E então vieram pelo cerro e a gente passava por baixo, eu ia passando com este cunhado que morreu, o Manéli… Passei o açude, pois ia assim por baixo e vejo (…) um carabinero a correr por cima, volto para trás, por cima do açude, se você visse os tiros, era só fogo, pá! Ê tenho aqui os sinais de uma bala, era de nôte, às quatro da manhã. Aqui passava-se munto. Além a Espanha, íamos a Valverde, Rubia, Lepes, Castelejo… Comecei aí aos 28.
(…) Levávamos tudo. Café. Assabão…Trazíamos açúcar. Era tudo. Os espanhóis não tinham nada!...Isso era despachado aqui de Santana.
(…) Aqui ganhava-se vinte escudos. Vinte para cá, quarenta! Íamos ali levar café à Mina da Isabel. Abalávamos daqui à boca da noite, mas nesse tempo íamos sempre a corta-mato, o caminho era raro fazer… (…) Quilómetros! Com trinta quilos! Vinte e tal léguas!... Então cheguei a trazer também cargas de ferro. Aqui compravam o ferro, pois!
(…) Passei tantas! Cheguei a estar das cruzes para lá oito dias sem comer, nem beber. Mamávamos o café e o açúcar, chupávamos…então não podíamos ir ao povo nem a parte nenhuma! (…) Entrava e saía de noite! Era uma vida triste!”
in "Memórias do Contrabando em Santana de Cambas- Um Contributo para o seu Estudo" (no prelo)
(fotografia de José Rodrigues Simão)
Posted by Hello

Brisas do Sul


Pois é, o festival islâmico foi uma maravilha. As ruas repletas de animação. Eduardo Ramos no Largo da Alcachofra encantou quem o foi escutar. Os Chocalheiros de Ficalho, os Gnawa, os vendedores de sonhos e pequenos encantos, os calígrafos, os moradores da vila, que também expuseram, do pão ao mel, as exposições de caligrafia árabe, dos mestres de Marraquexe, a pintura de Manuel Passinhas, a embriaguês do olhar, os cheiros, os sons, os rostos, tudo mereceu sorriso, a forma mais suave de brindar o que nos dá energia e prazer.
Nesta foto, a família Simão preparava-se para ver o Boavista-Benfica e eu aproveitei, enquanto faziam a montagem de écran na parede do quintal, para falar para Ashna Omrani e Salem Omrani, meus amigos da Tunísia.O maroto do Hélder captou o momento...
(fotografia de Hélder Simão) Posted by Hello

quinta-feira, maio 19, 2005

Vou Ali... e Já Venho!!!


Durante uns dias vou arejar. Ar da terra. Lá onde as cegonhas gostam de voar.Vou lavar os olhos na imensidão do chão de lume cercado de azul. Durante uns dias as minhas rotinas serão outras: falar com gente enrugada, tão admirável, que durante anos atravessou a fronteira para sobreviver, arriscando a vida. No tempo em que os mantrastos vestiam os mastros das festas de S. João e o nervo torcido se curava com uma benzedura aprendida escutando avós sábias.
Vou ficar uns dias em Santana de Cambas,para ver o senhor João Carrasco, homem de 101 anos, que escreveu esta quadra:
"Política e Religião
São dois grandes potentados
Que enganam multidões
Com promessas e sem pecados!"
Vou andar por Moreanes, na aridez da brisa quente, ver a horta biológica que o e outros amigos dia a dia vão criando. Talvez vá aos Bens, Salgueiros, Sapos, Formôa, Pomarão e à Mina de S. Domingos.
Espero encontrar a Nádia Torres em Mértola, professora, criadora de jóias, autora desta bela imagem. Vou andar por aquelas tascas, conviver com esses amigos que no sul resistem a tudo: à seca, à pobreza, à solidão, à estupidez!
Solidariamente, vou estar com eles, partilhar sonhos, soltar ideias, reflectir futuros, escrever parte da história deste património que são as pessoas. A sua forma de estar, a lembrança das tradições, entre memória e esquecimento, a identidade alentejana dos povos da raia.
Vou ali...e já venho!!! Ou seja: dia 1 de Junho, se tudo correr bem, estarei de novo a postar.
Um agradecimento especial a todos os leitores linkados ou não.
É com os vossos olhos, coração e opiniões que o blogue respira.
Bem Hajam!!! Posted by Hello

quarta-feira, maio 18, 2005

Myrtolah Arabi


Começa amanhã...com um Souk (mercado) de aromas, trapos, iguarias e artesanato diferente, vindos de Granada e Norte de África, pelas ruas à volta da mesquita, a terceira edição de um Festival, ao qual nunca falhei e onde, há dois anos, confundi um marroquino, que pensava que eu era árabe. Perguntava ele, no meio de um concerto dos Rádio Tarifa: "Ruiah! Arabi Maroqui?"(irmão, és árabe de Marrocos?"). Ficou sarapantado quando, perante a sua insistência, lhe respondi: "Je m'excuse, mais je suis portugais!"("desculpe, mas sou português!")
O homem nem queria acreditar, depois de olhar para a minha tez morena, que espelha o sangue árabe que me corre nas veias, e ainda por cima estando eu com uma djilaba vestida...
Em Mértola vou fazer por ser feliz, com a Ana e com toda a gente boa que por lá vai aparecer. Estive anos e anos sem ver um amigo, que é um criador pujante, designer inovador, artista marcante na sua sensibilidade de alma sem amarras. O Carlos Costa, que aproveito, a partir deste jornal, quase diário, para saudar!
Saúde e boa festa para todos! Posted by Hello

terça-feira, maio 17, 2005

O Blogue da Paula


Associada da "Aldraba" e apaixonada pela sua terra natal - Alpedrinha - a professora Paula Cristina Lucas da Silva criou um simpático blogue, que referi por estas bandas, no início de Maio (dia 4). Hoje fui lá e além de comentar várias imagens e legendas, "roubei-lhe" esta fotografia deliciosa, de uma porta (em que rua? qual o número?) que tem um batente e uma aldraba em condomínio.
Um grande Bem Haja à Paula e passem por lá para conhecerem, ou reverem, essa pérola da Beira Baixa, que a marquesa de Alorna designou por "Sintra da Beira"...

Ela é uma Déli!


"A mais loura de Lisboa" é uma déli. Descubram-na na próxima feira do livro, perguntando por este título. E nos blogs:
(fotografia da "nuvem" Vanda Oliveira)
Posted by Hello

segunda-feira, maio 16, 2005

A Vida de Contrabandista


Acabei de receber, escrito a lápis, um depoimento de M.J. acerca da sua experiência de contrabandista, nos anos 50-60 de miséria que este povo sofreu.
O relato tem por cenário Monsanto, a tal aldeia que os antónios ferros e os salazares pretendiam de "Mais Portuguesa", mas que ocultava, por detrás do granito, dramas familiares como o desta testemunha. Mantive a ortografia e partilho na sua totalidade o documento, que é uma pulsação de vida, um retrato, um libelo:
"A vida de contrabandista é muito dura, sou duma piquena aldeia da Beira Interior; e como sou a filha mais velha e os meus pais eram muito pobres, eu ia quase sempre com o meu pai levar o contrabando a Espanha que era café ensacado em sacos de 30 ou 50 kg fazíamos a viagem sempre de noite às vezes durante o Inverno saímos da nossa terra mais cedo saíamos por volta das 20 horas que já era de noite e chegávamos a Celeiros por volta das 11 horas e por volta das 5 horas da manhã já estávamos em casa de volta, levávamos cerca de 150 kg de café em cada carga, o meu pai tinha um macho e um burro então fazíamos assim até ao rio Erges fazíamos o percurso juntos por aquelas serras cheias de mato atravessámos o rio sempre pelas partes mais baichas e com muito cuidado já que naquela zona era preciso muito cuidado com a nossa guarda fiscal, e com os cravineiros da outra margem do rio a partir daí íamos separados eu ia sempre na frente que caso aparecessem os cravineiros a mim eles não faziam mal ainda me encontrei duas vezes com eles na viagem de regresso mas não me tiraram nada e uma das vezes fartei-me de chorar pois trazia os alforjes cheios de coisas para vender na minha terra tínhamos sempre muitas encomendas. Já o meu pai ainda dormiu uma noite no xilindró em Espanha porque na viagem trazíamos muita coisa, trazíamos muito tabaco, pão espanhol que tinha muita procura na nossa terra, trazíamos roupa sapatos espanhóis que também tinham muita procura, rebuçados chocolates caramelos cacau em pó que era uma delícia loiça de pirex que era moda naquela cultura que comprávamos lá nas cantinas por poucas pesetas e vendíamos lá na nossa terra com algum ganho o que dava menos lucro era o pão mas tínhamos sempre muitas encomendas, eu às vezes zangava-me com o meu pai e pedia-lhe para não o trazer porque ocupava muito espaço na carga mas o meu pai dizia que o pão era para tapar a fome por isso trazíamos sempre as encomendas e como naquele tempo não havia farmácia lá na nossa terra até trazíamos remédios, pomadas para as dores, vitaminas, serugumil, óleo de fígado de bacalhau, pinturas, cintas e até lingerie para algumas senhoras da aldeia que viviam mais abastadas."
O estudo do contrabando, aparte alguns contributos locais, está por fazer. Em Santana de Cambas, Mértola, ainda há pessoas, de muita idade, que não querem falar no assunto. Segundo Santiago Macias, a escassez de investigações acerca daquela actividade ilícita, secreta e por conseguinte geradora de constrangimentos, prende-se com a estigmatização a que estavam sujeitos socialmente os indivíduos que a praticavam. A memória do contrabando permanece ainda como motivo de vergonha para alguns dos intervenientes.
(Fotografia de Vanda Oliveira, de navalhas utilizadas por um barbeiro de Tourém, Montalegre, que para arranjar proventos suplementares, face a uma família numerosa, além da agricultura e da feitura de cestos, também fez contrabando naquela parte da raia transmontana.) Posted by Hello