sexta-feira, julho 02, 2010

Elegia para uma Ave Livre


"Nada é excessivo quando amamos" (Janica)


Durante três meses, uma ave inundou o meu coração com sentimentos que desconhecia.
Ontem, ao regressar de Odeceixe, a vizinha que ficara com ele, trouxe-o de volta, o que sucedeu sempre que me ausentei, embora por períodos curte fim de semana.

O bicho olhou-me de esguelha, depois de aceder ser conduzido - como era costume - até à varanda, para contemplar e sorver as cores e aromas do anoitecer. Mordiscou-me com vigor, talvez sentido por eu o ter deixado tanto tempo em cativeiro, quando ele começara a provar da sociabilidade, acamaradando com os seus pares, que o bicavam no início mas que na madrugada em que parti para o sul o chamaram, tocando com os seus bicos no vidro da janela, o que me comoveu e me deixou constrangido, por temer que, a exemplo do que já se passara num fim de tarde em que participara em reuniões cívicas, esperara por mim no parapeito da varanda, esfaimado e zangado.

Ontem prometi que logo que fosse manhã o soltaria e poderia fazer o que lhe apetecesse. O Kiko imitou os meus lábios, durante a fala, abrindo e fechando o bico, incapaz de produzir sons iguais à minha voz, mas pareceu compreender o que eu lhe disse.
Pela primeira vez ouvi-o cucurrulando...

O Kiko não voltou, como noutras alturas. Atingiu a maioridade, cortou o cordão umbilical.
Contudo, vislumbro dois vultos de pombo, e não me lembro de ter visto antes, na base do Neptuno que encima o chafariz do largo onde moro, parecendo-me que, com um ou uma companheira, o kiko resolveu passar ali a noite...
Doravante, quando for de férias já não fico preocupado a pensar em como estará...pois escolheu viver entre os seus, sentindo-se capaz de enfrentar os obstáculos da existência: automóveis, gatos, e pessoas... que ele nem sonha, mas andam por aí envenenando animais, com o pretexto de controlar pragas
Talvez regresse um dia para me apresentar os filhos.

Luís Filipe Maçarico (texto)
António Brito (fotografia)

5 comentários:

  1. Na frase da Janica está o sentido resumido da tua estória com o Kiko...

    Provavelmente o Kiko passará a rondar a tua janela sabendo-te porto seguro... sabendo-se livre para continuar a partilhar-te na distância íntima do espaço diferente... ainda assim comum de alguma forma...

    Em ti a frase da Janica faz todo o sentido.

    Jingã

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  2. É a lei natural da vida. Como diz o povo Cada macaco no seu galho. Ainda que o normal é que o sentimento existente entre os dois faça com que o Kiko volte de vez em quando como qualquer amigo que se preza, para visitar outro amigo.
    Um abraço e bom fim de semana

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  3. Em 22 de Dezembro de 1979, escrevi, no meu "Diário...", o seguinte pensamento:

    «ANIMAIS OU GENTE?

    Animais ou gente?
    Oh... Animais!
    Porque gente é só gente
    e os Animais são muito mais!»

    Hoje, é com muito gosto que acrescento:
    Felizmente que Luis Maçarico não é só gente!

    Abraço
    Sérgio O. Sá

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  4. Dói!...
    Mas dói ainda mais saber que um ser poderia definhar com as saudades dos voos e da sua espécie!Antes a liberdade de podermos ser o que sentimos!
    :)

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  5. Melhor voar que morrer!
    E por vezes!
    Melhor morrer que viver.
    As aves de arribação, não querem gaiolas nem casas!
    Querem voar sem destino!
    Querem a liberdade que é delas...
    Dando uso ás próprias asas.
    Querem pousar nas estátuas.
    Esvoaçar pelas janelas!
    Beber a agua nas fontes, nas bicas, nas poças.
    O Kiko?
    Esse levará na lembrança!
    Se é que lembrança tem!
    Que um dia teve um amigo!
    Um bondoso e bom amigo!
    Que não tinha penas nem asas
    Mas que se preocupava consigo.

    Aquele abraço:

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